OS CRIMES DE WHITECHAPEL
pelo escritor Mario Augusto Pool
Assim como tantos outros quartos de adolescente, o casulo de Jamal dispunha de uma parede repleta de fotografias tiradas no último ano com seus amigos de Londres. Logo abaixo, outras fotos de famosos e pôsteres compartilhavam o mesmo espaço: Brooke Shields, a musa de A Lagoa Azul; Farrah Fawcett, a mais belas das panteras; Don Adams, o agente 86; Lee Majors, o homem de seis milhões de dólares; e os não menos famosos Adam West e Burt Ward, o Batman e o Robin, do seriado da TV que o garoto não perdia nenhum episódio.
No seu criado-mudo estava uma foto da sua mãe Jamile, emoldurada em um rico porta-retratos dourado, presente do seu pai para que ela ficasse sempre na sua lembrança. Fora isso, os demais detalhes pertenciam a Jamal: roupas largadas no chão, pacotes de chips e várias latas de refrigerantes jogadas ao entorno de uma lixeira, resquícios de arremessos que não deram certo.
Por um instante, o sono tranquilo de Jamal foi despertado por um som estranho, que parecia vir da rua. Ventava muito quando uma das janelas do quarto se abriu e o frio congelante de novembro invadiu todo o ambiente, acordando definitivamente o garoto.
Levantou e caminhou descalço em direção à janela que se misturava entre a veneziana aberta e as cortinas soltas ao vento. Estendeu a mão para fechar, quando percebeu que lá embaixo, no outro lado da rua, um vulto parado na calçada olhava fixo para o seu prédio. Por instantes, pensou ser apenas um transeunte, mas afinando o olhar percebeu que a imagem tinha um semblante jovem, magro, cabelo liso e um jeito malandro de se movimentar. Ficou ali, olhando imóvel e aguardando que o sujeito seguisse o seu caminho. A temperatura lá fora devia estar abaixo dos seis graus. O vulto se movia devagar, de um lado para outro, até que, num gesto conhecido, Jamal se surpreendeu com o sujeito e se assustou. A figura indistinta retirou do bolso da camisa um cigarro, enquanto que a mão livre buscou no bolso da calça uma pequena adaga que brilhou na penumbra da noite. Em seguida, cortou o filtro do cigarro e o acendeu.
— Não é possível.
Aquela visão perturbou Jamal, que saiu correndo do jeito que estava vestindo um pijama e pés descalços, deixou a cobertura e desceu todos os lances de escada até a portaria do prédio. Passou pelo porteiro da noite como um raio e ganhou a rua. Ofegante, parou na frente do prédio e pode mais uma vez olhar para o vulto, que agora se confirmava. Inacreditavelmente ele estava ali, na sua frente, fumando um cigarro mentolado que deixava um leve perfume no ar.
— Ei! – gritou Jamal.
O rapaz apenas sorriu. Passo a passo, Jamal foi se aproximando. Seus pés, aos poucos, iam sentindo o gelo sobre o asfalto. Seu corpo sentia o frio daquele encontro, que nada se comparava ao do clima de Londres. O estranho continuava parado no mesmo lugar e olhava fixamente para Jamal, que estava agora a poucos passos dele. Jamal o fuzilou com um olhar, mas ele não se abalou. Fez apenas um gesto com a mão, chamando-o para se aproximar.
— É você?
— E aí, maluco? Pensou que ia se livrar de mim tão fácil? – sorrindo.
— Não é possível! Você está morto.
— Sim, parece que sim. Mas você ainda me deve.
— Me perdoe, saiu tudo errado, mas sabe como é, vocês foram longe demais, sou homem.
— Perdoar? Não sabemos muito o que é isso, esquece. Apenas cobramos o que é nosso.
— O que você quer?
— Meu maço de cigarros.
— Está bem, posso conseguir outro, não tenho aqui comigo.
— Uma pena, Jamal. Isso não é bom – respondeu.
— Mas eu posso te ajudar, talvez.
— Você, me ajudar? Não conseguiria nem se quisesse. Como eu te disse, vim cobrar a sua dívida. E ela tem que ser paga, agora.
Em uma fração de segundos o estranho avançou na direção de Jamal, segurando-o pelo pescoço e, aos poucos, o erguendo do chão. Em seguida, jogou o mesmo na calçada gelada. Ali, caído e com frio, o garoto tentou gritar, mas seu pescoço foi bruscamente puxado para trás. Não demorou muito para sentir o risco frio do metal da adaga cortando a sua pele de lado a lado. O sangue jorrou e a voz de Jamal não podia mais ser ouvida, sendo só mais um grito silencioso em mais uma madrugada de Londres.
— Nããããão!
Em um salto, Jamal acordou em sua cama. Seu coração disparava e seu corpo suava frio. Sentou-se envolvendo a garganta com as mãos trêmulas. Tudo estava no seu lugar.
— Merda! Outra vez… Isso precisa parar.
* * *
— Escutei seu grito essa noite. Teve outro pesadelo? - perguntou o pai, iniciando a conversa enquanto servia o café e retirava da boca de Jamal um cigarro aceso.
— Sim, já estou me acostumando. Um cara anda me assombrando, vou ter que morrer com esta sina. — concluiu Jamal.
— E você acha isso normal? Quer passar o resto da vida sendo assombrado?
— Sei lá, não sei o que pensar! - respondeu Jamal, sem muita preocupação, sentado em sua cadeira, com os pés repousados no assento da frente enquanto descascava uma maçã com sua adaga.
— O lance é meio perturbador, quase macabro. De alguma forma, me avisa de acontecerem coisas ruins.
— Temos que fazer alguma coisa a respeito. - sugeriu o pai, olhando para Jamal.
— Tô bem, um pesadelo não vai mudar nada.
— E esse cigarro? – perguntou o pai. — Está fumando agora?
— Ganhei de um cara ontem a noite. Não curti muito, é cigarro com sabor.
— E essa adaga?
— Já tenho a tempos. Também foi um presente, é muito antiga. Lilibeth me deu.
— Quem é Lilibeth?
— Um amiga da rua, mora em Whitechapel, faz programa por lá.
— E por que ela lhe deu uma adaga?
— Andei apanhando de três veados, os caras me pegaram de jeito, foi covardia. Ela ficou com pena e me deu de presente pra eu me defender. Tem quase cem anos, disse que foi passada de mães para filhas, todas elas foram prostitutas, sabia? - olhando para ver a reação do pai.
— Posso ver a adaga? — perguntou o pai, estendendo a mão.
Com a lâmina já sem muito brilho, entregou ao pai, que olhou a peça e percebeu que era muito rara. Abriu o corpo da lâmina onde estava estampado: "Laguiole, 1888". Uma marca famosa e centenária, atribuída aos crimes de Jack “O Estripador”.
O pai se despediu de Jamal, deu-lhe um tapinha no rosto e em seguida o beijou na testa, pegou seu quepe, pôs sua arma no coldre, seu rádio comunicador na cintura e saiu para o trabalho dirigindo a viatura.
* * *
— Mais um homicídio?
— Sim, capitão. O terceiro nesta semana, todos iguais, mesma idade, mesmo jeito.
O corpo degolado com pouco mais do que seus dezesseis anos repousava inerte e frio. As evidências apontavam para uma luta seguida de morte, o corte profundo, feito no pescoço, na altura da garganta, fora preciso e fatal. Não havia outras provas, nada fora roubado. Na cena do crime apenas um cigarro mentolado com o filtro cortado ao meio repousava na pedra ensanguentada de Whitechapel.