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by writer Mario Augusto Pool

SAUVIGNON

- E aí, Orelha, vai ao jogo hoje? - Vou sim, Renatinho, mas não esqueça, meu nome é Fredie! - Falou, Orelha, te vejo no campo, então? - Lesado! - Oi, Orelha! - Oi, Bob. - Mandou bem ontem; te vi na maior conversa com a loirinha do bar, tá matando, hein! - Deixa de ser babaca, meu! Ela é minha amiga, só isso. E meu nome é Fredie; vê se lembra! - Pode deixar, Orelha, vou lembrar.

Nada pode ser pior que um apelido que lembra o seu pior defeito. Provavelmente seja essa a lógica de se pôr um apelido em alguém. Mas o meu me irritava profundamente, e, o pior, as pessoas achavam muito normal, porque um cara que tem orelhas grandes pode ser chamado daquilo que se bem entende, entendeu? No meu caso, “Orelha”.

O assunto sempre estava na minha cabeça. Não me deixava triste, mas irritado. Em certo momento, pensei operar minhas orelhas; sei lá, diminuir de tamanho, fazer alguma coisa para que elas não chamassem a atenção. Até comentei com o Schneider, meu melhor amigo, mas dele ouvi a pior resposta:

- Loucura, Orelha! Você vai gastar grana operando as orelhas, e o apelido, ainda assim, vai continuar. Pensa bem, nesta cidade, todo mundo te conhece como Orelha; aceita!

O Schneider estava certo, apelido é uma praga que gruda e nunca mais sai.

Em cidade pequena, como a que moramos, em que tudo se espalha mais rápido, e um apelido que nos acompanha há anos dificilmente morre de um dia para outro. Mas alguma coisa eu precisava fazer, já que isso estava me incomodando.

Naquela tarde, decidi esquecer e ir para o meu trabalho na igreja. Era coroinha e tinha responsabilidades a cumprir na paróquia da Nossa Senhora do Sapo. Igreja pequena do padre Romão. Seja lá qual fosse a tarefa daquele dia, iria me distrair, e assim não pensaria tanto sobre as chateações.

- Olá, Padre Romão, benção! - Olá, Orelha, Deus te abençoe! - Até o senhor, padre? Puxa vida! Tá tudo perdido mesmo.

- O que foi que disse, Orelha? - Nada não, padre! Não falei nada, tava pensando em voz alta.

- Meu menino, vou pedir para você descer até o porão e fazer uma boa limpeza lá em baixo. Está tudo muito bagunçado e quero ver se deixo aquele lugar melhor, leve um balde, vassoura e panos e faça uma boa faxina. Pode ser, Orelha? - Sim, Padre Romão, deixa que eu limpo tudo sim.

Descendo ao porão da sacristia, entrei naquele lugar escuro e sombrio onde nunca havia estado antes. Era uma mistura de sótão com depósito de coisas velhas, espelhos, cadeiras, bancos da igreja, santos de gesso quebrados ou descascados, cortinas, baús, pilhas de Bíblias e hinários, muito cheiro a mofo e poeira. Não sabia nem por onde iniciar, era um caos. Mas, como queria me ocupar, o desafio era bom. Comecei tentando organizar as coisas, retirando tudo de um lado e colocando para o outro. Quando desocupava uma área, eu varria e depois passava um pano molhado completamente imundo de tanta sujeira acumulada. E assim fui fazendo. Aos poucos, o espaço foi ficando com outra cara, mais claro e organizado.

Puxei todos os santos para um canto, as cadeiras e bancos, para outro, e os baús, reuni todos em outro lado da sala, perto da escada que dava acesso ao andar de cima. Com certa curiosidade, abri um dos baús para ver o que continha. Minha surpresa foi imensa. No interior, e sob uma camada espessa de palhas, estava uma garrafa de vinho. Uma garrafa que parecia ser muito antiga, com um rótulo comido pelas traças, amarelado e pouco legível. Mas ainda podia se ler, bem no centro do rótulo, a palavra “Sauvignon” e, mais abaixo, uma pequena frase com letras miúdas, dizendo: “O vinho sagrado”.

Puxa vida, era uma garrafa de vinho antigo e poderia ser raro também. Mas por que estava ali escondida naquele baú? “Era para o padre Romão ter usado nas suas missas, mas, por algum motivo, preferiu nem abrir a garrafa”, pensei comigo, vislumbrando aquele líquido escuro no seu interior e imaginando o que aconteceria se eu bebesse um pouquinho. Afinal de contas, meu avô já havia me dado uma taça de vinho no seu aniversário. Fiquei um pouquinho tonto, mas nada que fosse tão grave. Era isso mesmo! Depois de ser chamado tantas vezes de Orelha e me incomodar com isso, por que não me presentear com uma taça de vinho. Corri até a sacristia, onde sabia que o padre Romão guardava um saca-rolhas, peguei escondido e voltei para o porão.

Torci o saca-rolhas e, com muita força, consegui fazer a rolha sair. Naquele instante, um cheiro, um aroma fascinante envolveu o ar do porão. Era algo que nunca havia sentido antes. Não parecia com cheiro de vinho; era muito melhor, mais adocicado, tinha um perfume muito atraente, e a vontade de beber foi imediata. Sem taças ou copos, peguei a garrafa e bebi um gole no próprio bico.

Tomei mais dois goles, e mais dois e só parei quando percebi que estava tonto e que o efeito do vinho já começava a acontecer. Estava com muita vontade de viver e de estar junto dos meus amigos. A tontura foi aumentando, e decidi então me deitar um pouco para não cair. Rapidamente, peguei no sono e adormeci.

Em sobressalto, acordei e percebi que realmente havia adormecido no porão da igreja. Levantei e subi as escadas correndo. Tinha que voltar para casa. Já devia ser tarde, pois, no interior da igreja, nem o padre Romão se encontrava por lá. Saí e fui correndo, rua afora. Acabei me encontrando com meu amigo Schneider.

- Oi, Schneider, e aí, tudo de boa?

- Oi, Fredie, tudo tranquilo, meu, e você?

- Fredie? Você me chamou de Fredie?

- Ué, e por que não? Seu nome não é Fredie?

- É sim, é sim, valeu, meu! Gostei de ouvir.

Sem muita explicação, aquela sensação de ser chamado pelo nome foi algo que há muito tempo eu não vivia. Tudo o que eu queria, o meu amigo Schneider, num momento de lucidez ou de compaixão, estava fazendo: me chamar pelo meu nome. A duas quadras dali, estava o Bob, o cara que ficava tirando onda com a minha amizade pela loirinha do bar. Esse sim era o pior de todos, o cara mais chato da cidade.

- E aí, Fredie. Vem aqui, meu ídolo, e me conta o que você já fez com a loirinha do bar!

Já agarrou? Já deu um beijinhos?

Era muito estranho. Parei e fiquei imóvel olhando para aquele chato. Não sabia o que estava acontecendo ao certo, mas era a segunda pessoa a me chamar pelo meu nome.

- O que foi, Fredie? Viu algum fantasma? Não vai me contar o que tá rolando com a

loirinha? - Humm, nada não, Bob. Eu não tô agarrando ninguém; ela é só minha amiga. Tô com

pressa; depois nos falamos, tchau.

Inacreditavelmente, alguma coisa estava mudando, e eu ainda não sabia o que era. Foi então que me lembrei do jogo. Podia estar atrasado. Corri o mais que pude para o campo ao lado da escola e, quando cheguei, todos já estavam lá, meu time, o time oponente e a galera inteira que ficava na torcida. Apenas eu, que era o artilheiro, ainda não tinha entrado em campo. Saltei a cerca e corri para o meio do campo, quando um dos meus amigos jogadores me viu indo na direção deles.

- Olha lá, pessoal! Podemos começar; o Fredie chegou!

Todos começaram a aplaudir e a gritar. Realmente, eu jogava bem, e esse era o motivo de todos gostarem muito de mim, entre outras coisas.

- É o Fredie! Viva! - Fredie! Fredie! Fredie! Fredie! Fredie!

Aquilo foi demais! Meu nome estava sendo dito em coro por todos, até mesmo o time adversário. Nunca imaginei tanta demonstração de carinho. Chorei de emoção e fui para o campo fazer o que melhor sabia: jogar futebol. Logo, os resultados vieram. Saiu o primeiro... e o segundo gol. Fui levado ao alto pelos braços do meu time e dos meus amigos.

De repente, senti uma mão empurrar meu ombro; sacudiu uma vez, depois de novo e mais outra vez e, quando olhei para ver quem era, avistei o padre Romão.

- Ei, Orelha! Acorda, vamos! Você dormiu aqui? - Oi, padre Romão. Acho que peguei no sono - falei baixo, ainda sonolento. - Pegou no sono, seu moleque? Você ficou foi bêbado, isso sim. Olha que vergonha, bebeu a garrafa de sauvignon que ganhei dos milagres de Aparecida, presente do Diácono Luis.

Era para um momento especial, e você, um menor, bebeu dentro da minha igreja. Meu Deus do céu! - Exclamou o padre Romão, se benzendo e me ajudando a levantar. - Vá pra casa, e não conte a ninguém que você bebeu o meu vinho. Vá descansar e só volte amanhã para terminar a sua tarefa. - Está bem, padre. Vou embora. Acho que já aprontei demais por hoje. - Com certeza, Orelha, hoje, você passou dos limites.

Saí correndo da igreja e me lembrei do jogo. Corri o máximo que pude para o campo. Quando cheguei, um dejavu: todos já estavam lá, meu time, o time oponente e a galera inteira que ficava na torcida. Apenas eu, que era o artilheiro, ainda não tinha entrado em campo. Saltei a cerca e corri para o meio do campo, quando um dos meus amigos me viu indo na direção deles.

- Olha lá, pessoal! Podemos começar. O Orelha chegou!

Todos começaram a aplaudir e a gritar. - É o Orelha! Viva! - Orelha! Orelha! Orelha! Orelha! Orelha!

Aos poucos fui entendendo o que havia acontecido, olhei para trás e lá estava o padre Romão, carregando a garrafa do Sauvignon sagrado, piscando para mim e vibrando como os outros. Foi o momento mais incrível da minha vida. Eu era o Fredie, mais conhecido como: Orelha, o cara mais querido da cidade, respeitado por todos e amado por muitos. Pelo meu futebol e também pelas minhas orelhas, é claro.

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