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pelo escritor Mario Augusto Pool

O REDENTOR

João. Um redentor ou um perdedor de sua própria vida? Uma vida de derrotas. De idas que nunca voltam e de sonhos que nunca chegam. Fez o que pode, mesmo podendo pouco. Viveu dando tapas no destino, socos no ar, que nunca conspirava ao seu favor, chutes no acaso que para seu descaso, nunca era favorável a si. Nunca ganhou, foi um sóbrio lutador. Tranquilo, sereno e impassível. Era seu dono em uma vida controlada por mulheres. Suas mães, suas meninas, suas paixões. Um maranhense que não usava dreadlock, que não usava drogas e não usava pulseiras de miçanga, daquelas que se compra em qualquer praia. Renegava por querer a terra que nasceu sem querer.

Na cidade em que o reggae dita o ritmo, São Luís, no estado do Maranhão, João nasceu. Em um ano de ebulição política com o Impeachment presidencial, João nasceu sem saber como, mas já a espera de um futuro melhor. Em uma família qualquer, em uma manjedoura sem a pompa dos cristãos e em um local desconhecido, foi sem ter sido. Prematuro, mirrado e com poucos cuidados. Só nasceu, não viveu, ao menos não naquele momento. Não conheceu seus pais e seguiu vivendo o hiato que a perda o causou. Um vazio mórbido que a infância o corroeu. 

Jogado em uma rua qualquer, logo nos primeiros dias, sofreu de pneumonia. Grave, gravíssimo. Ficou penando dentro de uma caixa de sapatos número 36. Não que lembre disto, sua salvadora que o conta. Uma indigente, miserável, que vivia das sobras dos lixos. Margarete, uma aparência mais velha do que a cabia, olhos esbugalhados, muitos quilos a mais e com a fome que o alimento nunca mata. Após mais um dia de busca por alimentos em cestos de lixo e caçambas no aterro, olhou para onde seus ouvidos a chamaram. Um grito, um choro miúdo e lento. Era João. Pequeno, frágil e morrendo. Não que ela pudesse fazer algo por aquele menino, mas ela sentiu que naquele momento, ela precisava fazer algo. Algo que nunca fez, uma ajuda a alguém mesmo sem conseguir ajudar a si própria. Recolheu o menino, deu-lhe roupas, rasgadas, mas roupas. E cessou o frio do menor, o tapando com papelões e jornais. 

Margarete vivia em um barraco. Telhas fora de lugar, paredes de madeira em que os cupins faziam banquetes, uma coleção de animais como ratos, baratas e alguns seres não identificáveis e um rádio, encontrado na rua há tempos por ela. A única distração da mulher, era ouvir seu cantor favorito. Bob Marley era seu guru. As rimas de salvação e o tom libertário eram a motivação de acordar a cada manhã, mesmo que não entendesse uma só palavra do seu ídolo.

João cresceu nas areias escaldantes dos lençóis maranhenses e viveu em busca da onda perfeita. Desde cedo, o surf era seu divertimento. O rádio velho que habitava na prateleira de um armário branco e embolorado não o servia como descontração. Ele simplesmente abominava o reggae e vivia contra o som que habitava os ouvidos da população local. Não que conhecesse outros sons, só não gostava de ir com a maioria. Era o típico do contra, aqueles que vão sem ter motivos. Até aquele instante momento e por muitos outros, acreditava que Margarete era sua mãe legitima e por isto, nutria um sentimento fraterno e afetuoso com ela. 

O barraco de sua mãe era próximo a praia e logo aos oito anos, começou a disputar os primeiros torneios de Surf. 18° lugar entre vinte competidores. Margarete o apoiou, ele renegou a arte das ondas. Pranchas, parafinas e sereias loiras praianas, nunca mais! Buscou outras alternativas, já que o surf não o deixara famoso. Precisava de uns trocados para ajudar sua mãe, que cada vez mais, se via em dificuldades financeiras. Aproveitou a passagem de um grande circo por sua cidade e aprendeu alguns truques com malabares. Uma esquina, um semáforo e algumas moedas. Seu primeiro trabalho parecia uma diversão para si. 

Com o dinheiro, ainda que pouco, chegando às mãos de Margarete, João criou um forte senso de responsabilidade, ainda que seu egoísmo se torne cada vez mais aparente. Tratava Margarete com um amor incomum, uma admiração plena. Pela luta e garra daquela mulher, se sentia refém de tanta compaixão. Queria dar a ela, tudo que nunca teve. Com as moedas, supria em partes, a dor da falta do alimento. E assim foi por algum tempo, malabares, moedas e fubá. Muito fubá. 

Por enquanto, o rumo de sua vida era incerto e mais incerto ainda era o som que ouvia no rádio velho, por intermédio de sua mãe. Era Bob Marley, como sempre. "Running Away", pedia a fuga imediata que ele nunca tivera. Fugir, fugir, fugir. Pra onde? Pra longe? Com dez anos, juntara menos de dez reais. Nem uma passagem de ônibus para Alcântara, cidade vizinha de São Luís, conseguiria comprar. Ficou por ficar. Sem querer, como tudo em sua vida. Linhas tortas que não criam destino. E assim, seguiu o bonde chamado vida.

Aos dezesseis anos João percebeu pela primeira vez que havia se tornado um adolescente de extrema beleza, olhos claros e pele dourada. O corpo atlético esculpido pelos anos de convívio com o mar, com as ondas, com o surf, e as proteínas do consistente fubá com peixe de Margarete, transformara o menino em um jovem cobiçado.

A vaidade e a autoconfiança tornaram-se companheiros de jornada. Agora João compreendia e correspondia aos fortes olhares que o seguiam em suas caminhadas pela praia. Devolvia sempre com um leve sorriso, protagonizado por apenas um canto dos lábios o qual deixava mostrar parte da dentadura alva e bem cuidada, por insistência da sua miserável mãe. Caminhar pela orla, usando apenas bermudas, era o melhor alimento para o nobre instinto masculino e sedutor de João.

E numa dessas caminhadas, o destino errante e indeterminado de João cruzou com a vida tranquila, segura e abastada de Mariana. Sentada na areia da praia, a linda menina morena de olhos verdes e pele clara, apertava os olhos em lágrimas e segurava com força o seu pé direito, atravessado por um esporão de arraia e que por tempos ficara oculto pela fina areia das dunas de São Luis. 

- Você está machucada? - perguntou João, fitando os olhos marejados da menina.

- Veja meu pé, finquei alguma coisa e está doendo muito - respondeu Mariana.

- Vixi! - exclamou. - É um ferrão de arraia. Isto é ruim da gota. Não podemos mexer! – completou João.

- Mas eu não consigo andar. Você pode me ajudar? - pediu Mariana, com os olhos baixos fitados na direção do seu salvador.

- Claro minha linda! Qual seu nome?


- Mariana.

- João, é o meu. Venha, lindinha! Pode deixar que eu vou carregar você pelo tempo que for necessário.

Tomou Mariana em seus braços e mostrou mais uma vez os seus dentes brancos e bem cuidados. 

A promessa do casamento se renova a cada encontro furtivo e ardente entre os dois. Mariana se mantém apaixonada. O trabalho no comércio do pai de Mariana pôde presentear a mãe Margarete com uma modesta mas bem cuidada casa. Limpa, com energia e água. Móveis novos, uma TV, e um novo radio, este, com um CD Player por onde ela ainda continua a escutar Bob Marley nas suas manhãs.

Os passeios solitários, trajando apenas aquela bermuda, se mantém como o ponto alto na vida de João. O sorriso de canto, bem como certos favores que ele ainda presta as meninas que estão em apuros nas praias de São Luis, supre a vaidade do rapaz e também mantém vivo um sentimento genuíno e prazeroso de ser reconhecido por todas elas como apenas o João. João “o redentor”.

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