pelo escritor Mario Augusto Pool
O VIZINHO ALEMÃO
Por mais que pudéssemos imaginar a sua origem e profissão, nada se encaixava naquele corpo franzino e torto. Tinha cabelos brancos com corte militar, pele rosada e sobrancelhas largas, alvas, algodões na época da colheita. Um nariz adunco e fino contracenava com aqueles olhos frios e imóveis de cor azul turquesa. Prováveis testemunhas de crimes que o mundo contemporâneo até hoje desconhece. Caminhava curvado, sempre olhando para os lados e muitas vezes virava o corpo inteiro para trás repentinamente.
Eu era atraído por ele. Atraído pelo seu silêncio e pelo mistério da sua origem. Todos diziam que era alemão e que fugira para o Brasil no final da Segunda Guerra Mundial. Usava um paletó curto, óculos sem aro, uma bengala de madeira preta e somente era visto saindo de casa ao entardecer, quase noite. Um tipo muito estranho, muito misterioso.
Nas tardes de futebol, em frente a sua casa, quando a bola invadia o jardim, eu podia perceber o movimento por detrás da cortina. Sabia que ele estava lá, me observando, planejando. Seja lá o que fosse com certeza eu já estava marcado. Fazia parte de uma lista de incontáveis e futuras vítimas daquele maníaco.
Precisava entendê-lo, estudar os seus movimentos, vigiá-lo sem ser notado, descobrir suas fraquezas. Por isto, o futebol estratégico. Meu amigo Fabiano era a isca perfeita. Gordo, grande, corria pouco e tinha movimentos lentos, suas coxas grossas produziam um atrito enorme quando se punha a correr. Usava uma franja caída na testa a qual tomava conta de todo o seu olho esquerdo, ou seja, possuía apenas metade da visão de um ser humano normal. Seria uma presa fácil, mesmo para aquele octogenário. Quanto a mim, bem, talvez conseguisse escapar, mas se tratando de um nazista carniceiro, minhas chances também se reduziam. Eu seria um alvo fácil na mira de uma Luger ou de uma Mauser. Pistolas precisas, lubrificadas, e prontas para abater judeus, negros ou meninos brasileiros de raça miscigenada. As chances de sobrevivermos a um ataque eram poucas. Mesmo assim iria tentar, alguma coisa precisava ser feito.
- Olha lá Fabiano! - exclamei no pé do ouvido de meu amigo.
- O que foi? Você viu alguma coisa? - perguntou com a respiração a centímetros do meu nariz.
- Ele está saindo. Parece que vai para a margem da lagoa. - continuei a explicação.
- Estou vendo. - disse aflito. - E está carregando um saco de pano. - completou Fabiano, cada vez mais inaudível.
- É lona. - expliquei. - Saco de lona nazista, já vi isto em filmes! Serve para carregar corpos! - conclui o meu raciocínio macabro.
De fato o velho senhor transportava em um carrinho de quatro rodas um volumoso saco de lona de cor verde escura, que a julgar pelo volume e pelo esforço que fazia empurrando aquele aparato, o conteúdo do saco era tão pesado quanto o seu tamanho.
Estávamos amontoados por detrás de uma cerca que separava o pátio da minha casa e o casarão, quase em ruínas, do estranho vizinho alemão. Ou melhor: do carniceiro e assassino nazista escondido há décadas no velho palacete da Rua das Palmeiras.
A propósito, me chamo Augusto e sou um sujeito normal. Não sou muito ligado em turmas e meu único amigo é o Fabiano. Mesmo ele sendo o único Emo gordo que eu conheço, é um cara legal e de confiança. Também tenho uma boa noção das minhas qualidades, sou bacana, modesto e humilde e acho importante um adolescente se conhecer para se manter sempre equilibrado. Considero-me inteligente, esperto, e muito realista. Pressinto coisas que nem mesmo os adultos conseguem perceber. Vejo o perigo de longe, sei reunir os fatos e tirar conclusões precisas. Por mais que digam que eu sou um pouco fantasioso, sei que isto é apenas uma forma amável de se expressarem. Na verdade estão querendo dizer o quanto que sou astuto e perspicaz, o que faz de mim um bom investigador, a propósito, a minha principal habilidade.
- Vamos segui-lo. - ordenei com voz firme - Vá à frente Fabiano e não se deixe notar!
- E se ele me vir? - perguntou lentamente.
- Corra e se esconda! A partir daí eu assumo o controle, não se preocupe! - conclui piscando um olho.
O velho senhor empurrou o carrinho até o trapiche da lagoa e de lá tomou um pequeno barco a remo. Com dificuldades depositou o saco de lona no fundo da embarcação e foi remando até a ilha dos colonos, uma pequena comunidade pecuária que habitava aquela porção de terra na lagoa dos Patos. Sem ter muito que fazer e desprovidos de uma embarcação, a nossa investigação fora interrompida na beira daquele ancoradouro. Ao longe podíamos ver o velho nazista se afastando e remando, até sumir em uma das margens da ilha.
- E agora o que vamos fazer? - indagou Fabiano com os olhos baixos e a respiração ofegante.
- Esperar! Ele terá de voltar. - Foi apenas se livrar do corpo. - respondi com a voz suave e o olhar imóvel fitando o horizonte.
- Mas antes vamos soltar uma das rodas daquele carrinho. - completei - Precisamos distraí-lo para poder atacar. - Entrelacei as mãos e retirei o pino de uma das rodas.
Passado algumas horas e o barco do velho nazista podia ser visto retornando em direção ao trapiche. Nossos corações dispararam, pois a frieza do carniceiro alemão nos fazia imaginar quanto sofrimento iríamos passar caso fossemos pegos. Fixamente acompanhamos todo o percurso até o momento em que o velho nazista aportou e lançou as amarras. Para nossa surpresa, o saco de carregar corpos continuava no barco. Nele, havia agora manchas de sangue e continuava tão pesado quanto partira.
Ao perceber a roda quebrada, o velho senhor praguejou e foi em busca de ajuda, deixando para trás a sua carga sinistra na beira do cais.
- E agora Augusto o que vamos fazer? - mais uma pergunta óbvia de quem tem pouca experiência nestes casos.
- Ora Fabiano, simples! Ligamos para a polícia. – respondi esboçando um sorriso com os lábios fechados.
Não demorou muito e uma viatura da Brigada Militar havia atendido ao chamado do 190 feito pelo celular do Fabiano. Contamos toda a história para os dois policiais, que atentos escutavam os fatos na ordem dos seus acontecimentos. Descrevemos com detalhes sobre os assassinatos e de como os nazistas torturavam e dessecavam as suas vítimas na Segunda Guerra Mundial. Com certeza os mesmos métodos estavam sendo utilizados pelo carniceiro da Rua das Palmeiras.
Estávamos no meio do nosso depoimento quando olhamos para trás e lá estava ele, a centímetros de nós. O nazista carniceiro havia chegado furtivamente sem que percebêssemos. Fabiano e eu saltamos para baixo do trapiche e gritamos para os brigadianos:
- Cuidado! Ele está nos emboscando! - Protejam-se!
Sem entender muito que se passava o velho senhor limitou-se a cumprimentar os dois policiais.
- Boa tarde senhor, este carrinho e aquele saco são seus?
- Boa tarde seu guarda! - Sim são meus. - Uma das rodas caiu e tive que ir em casa buscar uma ferramenta para consertar. - explicou inocentemente.
- O senhor mora aqui por perto? - continuou indagando o policial.
- Sim, ali no velho casarão da família Almeida. - Eu fiquei de zelador da propriedade desde que a Dona Alba faleceu em 1986. – continuava explicando sem entender muito bem o porquê daquele interrogatório.
- E o que o senhor traz naquele saco? - Ele está bem sujo de sangue! - indagou mais uma vez, virando-se para o objeto.
- É porco! - exclamou o velho senhor sorrindo e deixando a mostra a dentadura com vários dentes faltando.
- Porco? - indagou novamente o policial. - Posso olhar? - pediu licença franzindo a testa e olhando seriamente em nossa direção, ambos embaixo do trapiche. O policial abriu o saco para conferir o conteúdo.
- Sim seu guarda! - Sabe como é. - Eu sou português e planto muita batata nos fundos da casa dos Almeida. – Daí eu troco por carne de porco. - Me rende um dinheirinho e eu posso comer um bifinho de vez em quando, né? - completou o pobre velhinho banguela e sorridente.
Enfim, mais um mistério desvendado e concluído. Naquela tarde ganhamos uma carona no carro da Brigada Militar. Os dois policiais gentilmente fizeram questão de nos acompanhar e tiveram uma conversa com os nossos pais. Não sabemos o teor deste “bate papo”, mas acredito que as investigações sobre o nazista carniceiro foram levadas muito a sério. Estamos sob proteção policial. E nos próximos dois meses não poderemos sair de casa, brincar na rua e nem jogar futebol na frente da casa do nazista. Mas está valendo a pena, pois tudo isto foi por uma boa causa. É o que eu chamo de livrar o mundo de pessoas anormais.